quinta-feira, 13 de maio de 2010

O Papa em Portugal: o presente, a tradição e o Concílio Vaticano II.

De facto, a cultura reflecte hoje uma «tensão», que por vezes toma formas de «conflito», entre o presente e a tradição. A dinâmica da sociedade absolutiza o presente, isolando-o do património cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro. Mas uma tal valorização do «presente» como fonte inspiradora do sentido da vida, individual e em sociedade, confronta-se com a forte tradição cultural do Povo Português, muito marcada pela milenária influência do cristianismo, com um sentido de responsabilidade global, afirmada na aventura dos Descobrimentos e no entusiasmo missionário, partilhando o dom da fé com outros povos. O ideal cristão da universalidade e da fraternidade inspiravam esta aventura comum, embora a influência do iluminismo e do laicismo se tivesse feito sentir também. A referida tradição originou aquilo a que podemos chamar uma «sabedoria», isto é, um sentido da vida e da história, de que fazia parte um universo ético e um «ideal» a cumprir por Portugal, que sempre procurou relacionar-se com o resto do mundo.

A Igreja aparece como a grande defensora de uma sã e alta tradição, cujo rico contributo coloca ao serviço da sociedade; esta continua a respeitar e a apreciar o seu serviço ao bem comum, mas afasta-se da referida «sabedoria» que faz parte do seu património. Este «conflito» entre a tradição e o presente exprime-se na crise da verdade, pois só esta pode orientar e traçar o rumo de uma existência realizada, como indivíduo e como povo. De facto, um povo, que deixa de saber qual é a sua verdade, fica perdido nos labirintos do tempo e da história, sem valores claramente definidos, sem objectivos grandiosos claramente enunciados. Prezados amigos, há toda uma aprendizagem a fazer quanto à forma de a Igreja estar no mundo, levando a sociedade a perceber que, proclamando a verdade, é um serviço que a Igreja presta à sociedade, abrindo horizontes novos de futuro, de grandeza e dignidade. Com efeito, a Igreja «tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir, em todo o tempo e contingência, a favor de uma sociedade à medida do ser humano, da sua dignidade, da sua vocação. […] A fidelidade à pessoa humana exige a fidelidade à verdade, a única que é garantia de liberdade (cf. Jo 8, 32) e da possibilidade dum desenvolvimento humano integral. É por isso que a Igreja a procura, anuncia incansavelmente e reconhece em todo o lado onde a mesma se apresente. Para a Igreja, esta missão ao serviço da verdade é irrenunciável» (Bento XVI, Enc. Caritas in veritate, 9). Para uma sociedade composta na sua maioria por católicos e cuja cultura foi profundamente marcada pelo cristianismo, é dramático tentar encontrar a verdade sem ser em Jesus Cristo. Para nós, cristãos, a Verdade é divina; é o «Logos» eterno, que ganhou expressão humana em Jesus Cristo, que pôde afirmar com objectividade: «Eu sou a verdade» (Jo 14, 6). A convivência da Igreja, na sua adesão firme ao carácter perene da verdade, com o respeito por outras «verdades» ou com a verdade dos outros é uma aprendizagem que a própria Igreja está a fazer. Nesse respeito dialogante, podem abrir-se novas portas para a comunicação da verdade.

[...] «A Igreja – escrevia o Papa Paulo VI – deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, a Igreja torna-se mensagem, a Igreja faz-se diálogo» (Enc. Ecclesiam suam, 67). De facto, o diálogo sem ambiguidades e respeitoso das partes nele envolvidas é hoje uma prioridade no mundo, à qual a Igreja não se subtrai. Disso mesmo dá testemunho a presença da Santa Sé em diversos organismos internacionais, nomeadamente no Centro Norte-Sul do Conselho da Europa instituído há 20 anos aqui em Lisboa, tendo como pedra angular o diálogo intercultural a fim de promover a cooperação entre a Europa, o Sul do Mediterrâneo e a África e construir uma cidadania mundial fundada sobre os direitos humanos e as responsabilidades dos cidadãos, independentemente da própria origem étnica e adesão política, e respeitadora das crenças religiosas. Constatada a diversidade cultural, é preciso fazer com que as pessoas não só aceitem a existência da cultura do outro, mas aspirem também a receber um enriquecimento da mesma e a dar-lhe aquilo que se possui de bem, de verdade e de beleza.

[...] Foi para «pôr o mundo moderno em contacto com as energias vivificadoras e perenes do Evangelho» (João XXIII, Const. ap. Humanae salutis, 3) que se fez o Concílio Vaticano II, no qual a Igreja, a partir de uma renovada consciência da tradição católica, assume e discerne, transfigura e transcende as críticas que estão na base das forças que caracterizaram a modernidade, ou seja, a Reforma e o Iluminismo. Assim a Igreja acolhia e recriava por si mesma, o melhor das instâncias da modernidade, por um lado, superando-as e, por outro, evitando os seus erros e becos sem saída. O evento conciliar colocou as premissas de uma autêntica renovação católica e de uma nova civilização – a «civilização do amor» – como serviço evangélico ao homem e à sociedade.

Caros amigos, a Igreja sente como sua missão prioritária, na cultura actual, manter desperta a busca da verdade e, consequentemente, de Deus; levar as pessoas a olharem para além das coisas penúltimas e porem-se à procura das últimas. Convido-vos a aprofundar o conhecimento de Deus tal como Ele Se revelou em Jesus Cristo para a nossa total realização. Fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza. Interceda por vós Santa Maria de Belém, venerada há séculos pelos navegadores do oceano e hoje pelos navegantes do Bem, da Verdade e da Beleza.

Discurso do Papa Bento XVI no encontro com o mundo da cultura. Lisboa, 12 de maio de 2010

Fonte: Frates in Unum

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