A análise é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 12-05-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Não está claro se a crítica crescente do histórico de João Paulo II será suficiente para retardar sua beatificação, mas pode muito bem dar novas cores ao legado do Papa diante dos olhos da história.
Os capítulos do pontificado de João Paulo II que estão sendo re-examinados hoje, em grande parte porque foram apresentados para provar a resolução de Bento XVI, incluem:
- O Pe. Marcial Maciel Degollado, fundador dos Legionários de Cristo, a quem o Vaticano denunciou recentemente por ter tido uma vida privada “objetivamente imoral”, incluindo várias formas de má conduta e abuso sexuais. Bento XVI ordenou Maciel a viver uma vida de oração e penitência em 2006, mas esse edito deixou sem resposta por que Maciel, que morreu em 2008, foi protegido por tanto tempo sob João Paulo II. (As acusações contra Maciel surgiram pela primeira vez publicamente em meados da década de 90).
- O cardeal Hans Hermann Groër de Viena, na Áustria, foi acusado em meados da década de 90 de ter abusado de noviços monges, enquanto era abade beneditino. Mesmo depois que um grupo de bispos austríacos anunciaram que estavam “moralmente certos” da culpa de Groër, o Vaticano se recusou a analisar o caso. O cardeal Christoph Schönborn de Viena revelou recentemente que o ex-cardeal Joseph Ratzinger, atual Papa Bento XVI, quis agir, mas se queixou naquele momento que “o outro lado ganhou” – uma aparente referência a outras autoridades do Vaticano que impediram a investigação.
- Quando uma carta de setembro de 2001 do cardeal Dario Castrillón Hoyos que elogiava um bispo francês por ter se recusado a denunciar um padre abusador à polícia foi recentemente revelada, um duro comunicado do Vaticano disse que a carta confirma a sabedoria de colocar Ratzinger no cargo. No entanto, se Castrillón era realmente parte do problema, por que João Paulo II o manteve como prefeito da Congregação para o Clero durante o resto de seu pontificado? (Castrillón disse que João Paulo II autorizou a carta de 2001).
- Dado que as crises de abuso sexual estouraram em várias partes do mundo ao longo dos anos 80 e 90, por que João Paulo II demorou até maio de 2001 para emitir um “motu proprio” delineando novos procedimentos para esses casos? (Esse “motu proprio” provou suficientemente que Ratzinger foi forçado a garantir faculdades especiais do Papa no início de 2003 para garantir que o documento iria funcionar).
É difícil justificar a determinação de Ratzinger sem admitir também que havia obstáculos no topo – e isso, por sua vez, só pode jogar uma luz crítica sobre o Papa que permitiu que esses obstáculos inflamassem.
Resta saber se essas questões serão suficientes para desacelerar o impulso para a beatificação de João Paulo II. Um inquérito oficial do Vaticano sobre a vida de João Paulo II foi concluído em 2009, antes da recente crise. No dia 19 de dezembro, Bento XVI assinou um decreto “de virtude heroica”, testemunhando a santidade da vida de João Paulo II, qualificando-o a ser chamado de “venerável”.
O veterano jornalista italiano Andrea Tornielli, que cobre assuntos do Vaticano para o jornal conservador Il Giornale, disse que a “positio” – o termo em latim para o estudo oficial da vida de João Paulo II, que serviu de base para o decreto das virtudes heroicas – trata a crise dos abusos sexuais apenas de uma forma “rápida e apressada”.
Tornielli relatou que o único documento levado em consideração no processo sobre o caso de Maciel é uma carta do dia 17 de novembro de 2007 do cardeal William Levada, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, afirmando que não houve “envolvimento pessoal” de João Paulo II na forma como o Vaticano lidou com a acusações contra Maciel. Essa carta foi escrita em resposta a um pedido das autoridades responsáveis pela causa de João Paulo II, buscando esclarecimentos.
Durante algum tempo, esperou-se que a beatificação de João Paulo II poderia ocorrer ainda em outubro deste ano, marcando o aniversário de sua eleição ao papado no dia 16 outubro de 1978. Neste momento, o processo pode ter se aproximado de um redutor de velocidade por uma razão completamente diferente. A imprensa polonesa relatou, em meados de março, que um milagre atribuído a João Paulo II – a cura de uma freira francesa do mal de Parkinson – pode estar em dúvida, pois, segundo o relatório, o diagnóstico da freira não é definitivo.
O Vaticano rejeitou o relatório como “sem fundamento”.
Outros têm levantado dúvidas não com relação ao resultado final da causa de João Paulo II, mas com relação ao seu ritmo. Em junho de 2008, o cardeal italiano Angelo Sodano, enviou uma carta à comissão que estuda a vida de João Paulo II. Sodano, que serviu durante 15 anos como secretário de Estado de João Paulo II, escreveu que não tem dúvida sobre a santidade de João Paulo II, mas se perguntou acerca da sabedoria em agilizar a causa, enquanto os papas Pio XII e Paulo VI ainda estão na fila.
Uma vez que o milagre seja certificado pela Congregação para as Causas dos Santos, caberá a Bento XVI decidir quando se deverá realizar a beatificação. Mesmo os admiradores mais fervorosos do falecido papa estão agora sugerindo que seria uma boa ideia esclarecer os pontos de interrogação sobre a história de João Paulo II de antemão, especialmente com relação ao caso de Maciel.
“Por uma questão de prudência e para ajudar a garantir que o terceiro parágrafo em todas as notícias do dia seguinte à beatificação não se refiram a Maciel, que não merece essa atenção, eu espero que a beatificação ocorra depois de uma prestação de contas pública de como esse engano ocorreu”, disse George Weigel, autor da biografia de João Paulo II, “Witness to Hope” [Testemunha de Esperança].
Weigel disse que essa prestação de contas só pode ocorrer depois que o Vaticano dê uma solução para os Legionários de Cristo. Uma declaração do Vaticano do dia 1º de maio indicou que Bento XVI planeja, nos próximos dias, nomear um delegado pessoal para os Legionários e uma comissão para estudar as constituições da ordem, para guiá-los em um “caminho de profunda revisão”.
A defesa da história de João Paulo II sobre a crise dos abusos sexuais provavelmente vai apresentar cinco argumentos principais:
- João Paulo II foi um Papa “ad extra”, no sentido de que seu foco estava na evangelização do mundo mais amplo, em vez de uma administração eclesiástica interna. Ele dependia de seus assessores para lidar com essas questões, o que significa que, se alguém deixou a bola da crise cair, a responsabilidade principal jaz sobre figuras como Sodano e o secretário particular de João Paulo II, o atual cardeal Stanislaw Dziwisz de Cracóvia, na Polônia. Tornielli disse que, no Vaticano durante estes dias, alguns estão sugerindo discretamente que Dziwisz precisa “assumir sua própria responsabilidade”.
- Quando a crise eclodiu com força total nos Estados Unidos no início de 2002, João Paulo II já estava em declínio físico e provavelmente incapaz de responder com o vigor que a situação exigia. Esse argumento provavelmente pode acelerar a tendência de transferir a responsabilidade para os assessores do falecido Papa.
- Independentemente das falhas administrativas que o histórico de João Paulo II possa mostrar com relação à crise dos abusos sexuais, elas não impugnam sua santidade pessoal. Quando um Papa é beatificado ou canonizado, o Vaticano comumente afirma que o ato não equivale a endossar todas as escolhas políticas de seu pontificado.
- Um histórico misto com relação à crise dos abusos sexuais não apaga as realizações do reinado de João Paulo II, como seu papel no colapso do comunismo ou seus grandes avanços no diálogo católico-judaico e católico-muçulmano.
- João Paulo II também inspirou uma nova geração de sacerdotes que levam a sério a sua vocação. Weigel apresenta esse argumento da seguinte maneira: “Ele atraiu dezenas de milhares de jovens que trouxeram consigo um conceito heroico da vida e do ministério sacerdotal e que entenderam a crise dos pecados e dos crimes sacerdotais como uma crise de fidelidade”, disse. “Os jovens sacerdotes são a resposta de médio e longo prazo”.
Esses argumentos podem ser suficientes para limpar o caminho para a beatificação.
“Não há nenhuma chance de que Bento XVI atrase a beatificação por causa do escândalo dos abusos”, disse Giancarlo Zizola, outro especialista italiano em Vaticano. “Pelo contrário, espero que ele vá acelerá-lo”.
A questão de longo prazo, entretanto, é se o caso para a defesa de João Paulo II com relação à crise de abusos sexuais vai suportar o veredito da história – e, exatamente agora, o júri parece decididamente suspenso.
Quando Bento XVI foi eleito para o papado, há cinco anos, o resultado foi visto amplamente como um voto pela continuidade com João Paulo II – uma impressão reforçada na manhã após o conclave de abril de 2005, quando Bento XVI disse aos cardeais ainda reunidos na Capela Sistina que ele podia sentir a “forte mão [de João Paulo II] segurando a minha própria mão”.
Do ponto de vista de Bento XVI, portanto, a correlação quase matemática entre exonerar sua própria história e impugnar a de João Paulo II pode trazer à mente uma frase do próprio Fausto: “Até o inferno tem as suas próprias leis”.
Fonte: IHU (destaques e fotos do original)
Visto em: Fratres in Unum
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