“O Consilium foi influenciado por tendências inovadoras”
Dom Malcolm Ranjith foi o autor do prólogo da edição inglesa do livro “O Cardeal Ferdinando Antonelli e desenvolvimento da Reforma Litúrgica de 1948 a 1970” de autoria de Monsenhor Nicola Giampietro. Agora oferecemos nossa tradução do texto completo deste prólogo no qual Dom Ranjith, com grande valentia, realiza uma análise precisa da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, pleiteando a grande necessidade de reformar a reforma conciliar. Este precioso prefácio foi escrito em 2008 e aponta para uma importante reflexão sobre os trabalhos conciliares.
Tradução: Carlos Eduardo Maculan
Tradução: Carlos Eduardo Maculan
Até que ponto a reforma litúrgica pós-conciliar reflete em verdade a “Sacrosanctum Concilium”, a Constituição do Vaticano II sobre a Sagrada Liturgia? Esta é uma questão que minuciosamente tem sido debatida nos círculos eclesiásticos desde o mesmo momento em que o “Consilium ad Exequendam Constitutionem de Sacra Liturgia” [cujo secretário geral foi Mons. Annibale Bugnini] encerrou seu trabalho. Nas últimas décadas, tem sido debatido, inclusive, com maior intensidade. E enquanto alguns sustentam que o que foi realizado pelo “Consilium” estava em linha com aquele grande documento, outros se hão mostrado totalmente em desacordo.
Na busca de uma resposta a esta questão, devemos ter em conta a atmosfera turbulenta dos anos que seguiram imediatamente ao Concílio. Em sua decisão de convocar o Concílio, o Papa João XXIII havia desejado que a Igreja se preparasse para o novo mundo que estava emergindo após a desgraça dos desastrosos acontecimentos da II Guerra Mundial. Ele previu profeticamente o surgimento de uma forte corrente de materialismo e secularismo a partir das orientações internas da época precedente, que havia sido marcada pelo “espírito da ilustração” (Iluminismo), e na qual os valores tradicionais da antiga visão de mundo haviam começado a ser sacudidos. A revolução industrial, junto com suas tendência filosóficas, antropocêntricas e subjetivistas, especialmente derivadas da influência de Kant, Hume e Hegel, levaram ao surgimento do marxismo e do positivismo. Isto também provocou a aparição da crítica bíblica, relativizando até certo ponto a veracidade das Sagradas Escrituras, o que por sua parte teve influências negativas na teologia, gerando uma atitude que questionava a objetividade da Verdade estabelecida e a utilidade de defender as tradições e instituições eclesiásticas. Algumas escolas de teologia se atreveram, inclusive, a questionar doutrinas básicas da Igreja. Em realidade, o modernismo já havia sido anteriormente uma fonte de perigo para a fé. É neste cenário que o Papa João XXIII sentiu que era necessário encontrar respostas mais convincentes.
O chamado do Papa para um “aggiornamento”, assumiu, então, o caráter de busca da fortificação da fé, em ordem de fazer mais efetiva a missão da Igreja e ser capaz de responder de forma convincente a estes desafios. Não foi, certamente, um chamado para se caminhar segundo “o espírito dos tempos”, um “colocar-se” passivamente e à deriva, nem tampouco, um chamado para se realizar um novo começo da Igreja, mas sim um chamado para se fazer que a Mensagem do Evangelho servisse de resposta para questões difíceis que a humanidade enfrentaria na época pós-moderna. O Papa explicava o “ethos” por detrás de sua decisão quando declarou: “Hoje, a Igreja está sendo testemunha de uma crise dentro da sociedade. Neste tempo em que a humanidade está às bordas de uma nova era, aguardam para a Igreja tarefas de uma imensa gravidade e amplitude, como nos mais trágicos períodos de sua história. É questão definitiva, que devemos colocar o mundo moderno em contato com as energias vivificantes e perenes do Evangelho [...] em vista de um grande espetáculo – um mundo que revela sua grave pobreza espiritual, e a Igreja de Cristo, que ainda vibra com vitalidade – nós, temos sentido imediatamente a urgência de dever convocar nossos filhos para dar à Igreja a possibilidade de contribuir mais eficazmente em encontrar a solução dos problemas da era moderna” (Constituição Apostólica Humanae Salutis, 25 de dezembro de 1961). E continuava o Papa: “o Concílio que se aproxima se reunirá em um momento em que a Igreja encontra muito vivo o desejo de fortificar sua fé e contemplar-se a si mesma em sua própria unidade. Ao mesmo tempo, sente o urgente dever de dar uma maior eficiência à sua sã vitalidade e de promover a santificação de seus membros, a difusão da Verdade revelada, a consolidação de seus organismo” (ibid).
Portanto, o Concílio foi basicamente um chamado a um fortalecimento da Igreja desde dentro e em ordem de prepará-la melhor para sua missão em meio às realidades do mundo moderno. Subjacente a estas palavras, estava também o sentido da estima que o Papa sentia pelo que a Igreja era até então. As palavras “vibrante” e “vitalidade” usadas pelo Papa para definir o status da Igreja naquele momento, não deixam ver, por certo, nenhum sentido de pessimismo, como se o Papa depreciasse o passado ou tudo que a Igreja havia conseguido até o momento. É por isso que não se pode pensar justificadamente que, com o Concílio, o Papa havia chamado “um novo começo”. Tampouco foi um chamado para que a Igreja “desclassificasse” a si mesma, trocando ou abandonando totalmente suas tradições antiguíssimas, caindo, por assim dizer, absorvida pela realidade do mundo que a rodeia. De nenhuma forma se pediu a troca pela troca em si, senão somente na ordem de fortalecer e preparar melhor a Igreja para enfrentar os novos desafios. Em resumo, o Concílio nunca foi chamado a ser uma aventura sem fundo. Quis-se que fosse uma experiência verdadeiramente pentecostal.
Ainda assim e não obstante o muito que os Papas que guiaram este evento, insistiram na necessidade de um verdadeiro espírito de reforma, fiel à natureza essencial da Igreja, e incluso, quando o Concílio mesmo produziu belas reflexões teológicas e pastorais como a Lumen Gentium, Dei Verbum, Gaudium et Spes e Sacrosanctum Concilium, o que sucedeu fora do Concílio – especialmente dentro da sociedade em seu conjunto e no interior de seu círculo de liderança filosófica e cultural – começou a influenciar negativamente a Igreja, criando tendências que foram danosas para sua vida e sua missão. Estas tendências, que em ocasiões foram, inclusive, representadas mais virulentamente por certo círculos conectados com as orientações ou recomendações dos documentos do Vaticano II. Porém, de todas as formas foram capazes de sacudir os fundamentos da fé e os ensinamentos da Igreja numa medida surpreendente. A fascinação da sociedade com um exagerado sentido de liberdade individual e sua inclinação ao rechaço do perene e do absoluto, junto com outros pensamentos mundanos, tiveram influência dentro da Igreja, e amiúde, foram justificados em nome do Concílio. Esta visão também relativizou a Tradição, a verdade da doutrina desenvolvida e tendeu a idolatrar toda novidade. Continha consigo, fortes tendências favoráveis ao relativismo e o sincretismo religioso. Para eles, o Concílio tinha que ser, de tal sorte, “um novo começo” para a Igreja. O passado havia terminado seu curso; conceitos básicos e temas como o Sacrifício e a Redenção, as Missões, a proclamação e a conversão, a adoração como um elemento integrante da comunhão, a necessidade da Igreja para a salvação, todos estes foram deixados de lado, enquanto que o diálogo, a inculturação, o ecumenismo, a Eucaristia como “banquete” etc, se tornaram mais importantes. Foram depreciados os valores absolutos.
O Cardeal Joseph Ratzinger se referiu a este sempre crescente espírito de relativismo. Para ele, o verdadeiro Concílio “se contrapôs, já durante suas Sessões, com maior intensidade no período posterior, um constante “espírito do Concílio”, que é na realidade um verdadeiro anti-espírito. Segundo este pernicioso espírito (Konils-Ungeist em alemão), tudo que é novo, seria sempre e em qualquer circunstância, é melhor do que tudo que nos foi dado no passado ou do que existe no presente. Este anti-espírito, segundo qual a história da Igreja deveria começar do Vaticano II, considerado como uma espécie de ponto crucial” (Informe sobre a Fé, 1985).
O Cardeal descartava esta visão como falsa já que “o Vaticano II não queria certamente trocar a fé, senão respondê-la de maneira mais eficaz” (ibid). Também afirmou que, de efeito, “o Concílio não seguiu os rumos que João XXIII havia esperado”. E declarava que “é necessário também reconhecer que – ao menos até agora – não foi escutada a homilia do Papa João para que o Concílio significasse um novo salto adiante, uma vida e uma unidade renovadas para a Igreja” (ibid). Estas são palavras duras, porém, diria que muito verdadeiras, já que o espírito de uma exagerada liberdade teológica apartou, por assim dizer, o mesmo Concílio de suas metas declaradas.
O Consilium ad Exequendam Constitutionem de Sacra Liturgia [capitaneado por Mons. Bugnini e responsável direto pelo Rito Novo] tampouco esteve isento de ser influenciado por este incontível maremoto do chamado desejo de “mudança” e “abertura”. Possivelmente, algumas das mencionadas tendência relativizantes também influenciaram a Liturgia, minando a centralidade, a sacralidade e o sentido do mistério, e também minando o que a vida litúrgica eclesial havia nos permitido chegar por meio de uma contínua ação do Espírito Santo na bimilenária história da Igreja. Um exagerado sentido de busca do antropologismo, a confusão da posição entre sacerdotes e leigos e uma ilimitada provisão que abre espaço para a experimentação, foram cada vez mais visíveis em certas escolas litúrgicas.
Os liturgistas também tenderam a selecionar aquelas seções da “Sacrosanctum Concilium” que pareciam dar mais possibilidade à “mudança” ou à novidade, ignorando todas as demais. Por outra parte, existia um enorme sentido de pressa para efetuar e legalizar as mudanças. Tendeu-se a dar muito espaço a um modo de se olhar para a liturgia de forma demasiadamente horizontal. As normas do Concílio que tendiam restringir tal criatividade, ou que eram favoráveis à “forma tradicional”, foram ignoradas. Ainda mais, algumas práticas que a Sacrosanctum Concilium não havia sequer contemplado, foram permitidas na liturgia, como a Missa versus populum, a santa comunhão nas mãos, o abandono do latim, bem como todo canto gregoriano em favor de cantos e hinos em vernáculo sem qualquer espaço para Deus, e a extensão, mais do que além do racional, da faculdade de concelebrar a Santa Missa. Também houve uma extremada má interpretação do princípio da “participação ativa dos fiéis”.
Tudo isto foi efeito da obra do Consilium [esta obra foi o Rito Novo]. Aqueles que guiaram o processo de mudança, tanto dentro do Consilium como dentro da Sagrada Congregação dos Ritos, estiveram certamente influenciados por todas estas tendências inovadoras. No todo, o que eles introduziram foi negativo. Muito do trabalho realizado foi digno de elogios, porém, se deixou muito espaço para a experimentação e para a interpretação arbitrária. Estas “liberdades” foram exploradas até sua máxima expressão pelas mãos dos “peritos” litúrgicos, sendo que tudo isso conduziu a uma confusão demasiada. O Cardeal Ratzinger explicou estes fatos como “alguém se estremece diante do rosto desfigurado da liturgia pós-conciliar e como ela chegou a ser, ou outro se aborrece com sua banalidade e a falta dos estandartes artísticos” (A Festa da Fé, 1986). Isto não é para deixar toda responsabilidade do sucedido unicamente entre os membros do Consilium, todavia, algumas de suas aproximações eram “débeis”. De efeito, houve um espírito geral de ceder acriticamente em certos pontos ao espírito de mudança entusiasta da época, inclusive dentro da Igreja, mais visivelmente em setores e regiões geográficas. Alguns do que tinham autoridade na Sagrada Congregação dos Ritos também mostraram sinais de debilidade neste assunto. Concederam-se demasiados indultos sobre certos requerimentos.
Naturalmente, o “espírito de liberdade” a que alguns setores de peso dentro da Igreja deram “rédeas soltas” em nome do Concílio, inclusive fazendo vacilar aqueles que tomavam decisões importantes, conduziu e muito para a desordem e à confusão, algo que não buscaram nem o Concílio nem os Papas que o guiaram. A triste afirmação do Papa Paulo VI durante a tormentosa década de 70, “a fumaça de satanás entrou na Igreja” (homilia de 29 de junho de 1972 na festa de São Pedro e São Paulo); ou seus comentários acerca das escusas de alguns para impedir a evangelização “sobre a base de certos ensinamentos do Concílio” (Evangelli Nuntiandi, nº 80) mostram como este anti-espírito do Concílio fez mais dolorido seus labores.
A luz de tudo isso e de algumas conseqüências problemáticas para a Igreja, é necessário descobrir como emergiu a reforma litúrgica pós-conciliar, e que figuras ou atitudes causaram a presente situação. É uma necessidade que em nome da verdade, não podemos renunciar. O Cardeal Ratzinger analisou da seguinte forma a situação: ”estou convencido que a crise que estamos experimentado na Igreja se deve, em grande medida, à desintegração da Liturgia. Quando a comunidade de fé, a unidade da Igreja em todo o mundo e sua história, e o mistério de Cristo Vivo não são já visíveis na liturgia, onde mais será a Igreja visível em sua essência espiritual? Então, a comunidade celebra somente a si mesma, uma atividade que é completamente infrutuoso” (Joseph Ratzinger, Memórias. 1998). Como dizíamos antes, certa debilidade por parte dos responsáveis e a atmosfera de relativismo teológico, junto com o sentido de fascinação pela novidade, pela mudança, pelo antropocentrismo, o acento na subjetividade e no relativismo moral, ademais, a noção de liberdade individual que caracterizou a sociedade em seu conjunto, minaram os valores estabelecidos da fé e causaram este deslizamento até a anarquia litúrgica sobre que a qual falou o Cardeal.
As notas escritas pelo Cardeal Antonelli tomam, portanto, novos significados. O Cardeal Antonelli, um dos membros mais eminente e certamente envolvido no Consilium que supervisionou o processo de reforma, pode ajudar-nos compreender as polarizações internas que influenciaram as distintas decisões da reforma litúrgica e pode ajudar-nos também e ter a coragem de melhorar ou mudar o que foi introduzido erroneamente e que parecer ser incompatível com a verdadeira dignidade da liturgia. O Cardeal quando ainda era padre Antonelli há havia sido membro da Pontifícia Comissão para a Reforma Litúrgica criado pelo Papa Pio XII em 28 de maio de 1948. Foi esta comissão que trabalhou na reforma da liturgia da Semana Santa e da Vigília Pascal, reforma que foi tratada com muito cuidado. Essa mesma Comissão foi reconstituída pelo Papa João XXIII em maio de 1960 e, tempos depois, o padre Antonelli formou parte do grupo que trabalhou na redação da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium. Por tudo isso, ele esteve muito próximo e envolvido no trabalho de reforma desde os seus princípios.
Contudo, os ditames do movimento de reforma parecem haverem sido em grande parte desconhecidos até que o autor deste livro, “O Cardeal Ferdinando Antonelli e o desenvolvimento da reforma litúrgica de 1948 a 1970”, Monsenhor Nicola Giampietro, teve acesso a suas notas pessoais e decidiu apresentá-las em um estudo próprio. Este estudo, que foi também dissertação para o doutorado de Mons. Giampietro no Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo em Roma, nos ajuda a compreender os complexos trabalhos internos da reforma litúrgica prévios e imediatamente depois do Concílio Vaticano II. As notas do Cardeal Antonelli revelam um grande homem de fé e da Igreja, que se esforçava por conformar-se com algumas correntes que influenciaram os trabalhos do Consilium ad Exequendam Constitutionem de Sacra Liturgia. O que escreveu neste diário revela candidamente seus sentimentos de alegria como também seus sentimentos de dor e às vezes de medo diante da forma em que coisas estavam sendo feitas, as atitudes de alguns dos personagens principais da reforma, e o sentido aventureiro que caracterizou algumas das mudanças que foram introduzidas na liturgia. Este livro está muito bem redigido e foi citado pelo próprio Cardeal Joseph Ratzinger em um artigo que escreveu para a bem conhecida revista litúrgica “La Maison-Dieu”, intitulado “Resposta do Cardeal Ratzinger ao Padre Gy”. (La Maison-Dieu, nº 230, 2002/2, p. 116). Sobretudo, é oportuno estudá-lo, pois nos ajudará a ver o outro lado das apresentações mais eufóricas da reforma conciliar por parte de muitos autores contemporâneos.
A publicação em inglês deste interessante estudo contribuirá grandemente, estou seguro, para o já existente debate sobre a reforma litúrgica pós-conciliar. O que mais claro chama a atenção do leitor deste estudo é que o Cardeal Joseph Ratzinger declarou; “o verdadeiro tempo do Vaticano II ainda não chegou” (Informa sobre a fé, 1985). A reforma deve continuar, com a necessidade imediata, de reformar o Missal reformado de 1969, dado que um grande número de mudanças que se originaram com a reforma pós-conciliar parecem terem sido introduzidos com grande precipitação e sem reflexão, como declara repetidamente o mesmo Cardeal Antonelli. Necessita-se corrigir a direção para que as mudanças se façam verdadeiramente em linha com a Sacrosanctum Concilium, e se deve ir inclusive mais lejos, segundo o espírito de nosso tempo.
E o que nos impele a tais mudanças no é meramente o desejo de corrigir os erros passados [da reforma litúrgica], senão a necessidade de sermos fiéis ao que a liturgia é e significa para nós, e ao que o Concílio mesmo definiu o que é liturgia. Porque, como declarou o Cardeal Ratzinger, “a questão da liturgia não é periférica: o Concílio mesmo nos recorda que sobre esta, tratamos com o sendo o próprio coração da Igreja e da fé cristã” (ibid). O que necessitamos hoje não é nada além de audácia e alento para colocar o processo em movimento. Necessitamos identificar e corrigir as orientações e decisões errôneas, apreciar com coragem a tradição litúrgica do passado, assegurar que a Igreja redescubra as verdadeiras raízes de sua riqueza e grandeza espiritual, inclusive se preciso reformar a reforma litúrgica, assegurando assim que a Liturgia se transforme verdadeiramente em “expressão eminente da glória de Deus e, em certo sentido, uma intervenção do Céu sobre a terra” (Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, 22 de fevereiro de 2007. Nº 35).
+ Arcebispo Malcolm Ranjith
Secretário da Congregação para o Culto Divino de Disciplina dos Sacramentos
8 de dezembro de 2008, Festa da Imaculada Conceição de Maria.
Fonte: O Ultrapapista Atanasiano
Na busca de uma resposta a esta questão, devemos ter em conta a atmosfera turbulenta dos anos que seguiram imediatamente ao Concílio. Em sua decisão de convocar o Concílio, o Papa João XXIII havia desejado que a Igreja se preparasse para o novo mundo que estava emergindo após a desgraça dos desastrosos acontecimentos da II Guerra Mundial. Ele previu profeticamente o surgimento de uma forte corrente de materialismo e secularismo a partir das orientações internas da época precedente, que havia sido marcada pelo “espírito da ilustração” (Iluminismo), e na qual os valores tradicionais da antiga visão de mundo haviam começado a ser sacudidos. A revolução industrial, junto com suas tendência filosóficas, antropocêntricas e subjetivistas, especialmente derivadas da influência de Kant, Hume e Hegel, levaram ao surgimento do marxismo e do positivismo. Isto também provocou a aparição da crítica bíblica, relativizando até certo ponto a veracidade das Sagradas Escrituras, o que por sua parte teve influências negativas na teologia, gerando uma atitude que questionava a objetividade da Verdade estabelecida e a utilidade de defender as tradições e instituições eclesiásticas. Algumas escolas de teologia se atreveram, inclusive, a questionar doutrinas básicas da Igreja. Em realidade, o modernismo já havia sido anteriormente uma fonte de perigo para a fé. É neste cenário que o Papa João XXIII sentiu que era necessário encontrar respostas mais convincentes.
O chamado do Papa para um “aggiornamento”, assumiu, então, o caráter de busca da fortificação da fé, em ordem de fazer mais efetiva a missão da Igreja e ser capaz de responder de forma convincente a estes desafios. Não foi, certamente, um chamado para se caminhar segundo “o espírito dos tempos”, um “colocar-se” passivamente e à deriva, nem tampouco, um chamado para se realizar um novo começo da Igreja, mas sim um chamado para se fazer que a Mensagem do Evangelho servisse de resposta para questões difíceis que a humanidade enfrentaria na época pós-moderna. O Papa explicava o “ethos” por detrás de sua decisão quando declarou: “Hoje, a Igreja está sendo testemunha de uma crise dentro da sociedade. Neste tempo em que a humanidade está às bordas de uma nova era, aguardam para a Igreja tarefas de uma imensa gravidade e amplitude, como nos mais trágicos períodos de sua história. É questão definitiva, que devemos colocar o mundo moderno em contato com as energias vivificantes e perenes do Evangelho [...] em vista de um grande espetáculo – um mundo que revela sua grave pobreza espiritual, e a Igreja de Cristo, que ainda vibra com vitalidade – nós, temos sentido imediatamente a urgência de dever convocar nossos filhos para dar à Igreja a possibilidade de contribuir mais eficazmente em encontrar a solução dos problemas da era moderna” (Constituição Apostólica Humanae Salutis, 25 de dezembro de 1961). E continuava o Papa: “o Concílio que se aproxima se reunirá em um momento em que a Igreja encontra muito vivo o desejo de fortificar sua fé e contemplar-se a si mesma em sua própria unidade. Ao mesmo tempo, sente o urgente dever de dar uma maior eficiência à sua sã vitalidade e de promover a santificação de seus membros, a difusão da Verdade revelada, a consolidação de seus organismo” (ibid).
Portanto, o Concílio foi basicamente um chamado a um fortalecimento da Igreja desde dentro e em ordem de prepará-la melhor para sua missão em meio às realidades do mundo moderno. Subjacente a estas palavras, estava também o sentido da estima que o Papa sentia pelo que a Igreja era até então. As palavras “vibrante” e “vitalidade” usadas pelo Papa para definir o status da Igreja naquele momento, não deixam ver, por certo, nenhum sentido de pessimismo, como se o Papa depreciasse o passado ou tudo que a Igreja havia conseguido até o momento. É por isso que não se pode pensar justificadamente que, com o Concílio, o Papa havia chamado “um novo começo”. Tampouco foi um chamado para que a Igreja “desclassificasse” a si mesma, trocando ou abandonando totalmente suas tradições antiguíssimas, caindo, por assim dizer, absorvida pela realidade do mundo que a rodeia. De nenhuma forma se pediu a troca pela troca em si, senão somente na ordem de fortalecer e preparar melhor a Igreja para enfrentar os novos desafios. Em resumo, o Concílio nunca foi chamado a ser uma aventura sem fundo. Quis-se que fosse uma experiência verdadeiramente pentecostal.
Ainda assim e não obstante o muito que os Papas que guiaram este evento, insistiram na necessidade de um verdadeiro espírito de reforma, fiel à natureza essencial da Igreja, e incluso, quando o Concílio mesmo produziu belas reflexões teológicas e pastorais como a Lumen Gentium, Dei Verbum, Gaudium et Spes e Sacrosanctum Concilium, o que sucedeu fora do Concílio – especialmente dentro da sociedade em seu conjunto e no interior de seu círculo de liderança filosófica e cultural – começou a influenciar negativamente a Igreja, criando tendências que foram danosas para sua vida e sua missão. Estas tendências, que em ocasiões foram, inclusive, representadas mais virulentamente por certo círculos conectados com as orientações ou recomendações dos documentos do Vaticano II. Porém, de todas as formas foram capazes de sacudir os fundamentos da fé e os ensinamentos da Igreja numa medida surpreendente. A fascinação da sociedade com um exagerado sentido de liberdade individual e sua inclinação ao rechaço do perene e do absoluto, junto com outros pensamentos mundanos, tiveram influência dentro da Igreja, e amiúde, foram justificados em nome do Concílio. Esta visão também relativizou a Tradição, a verdade da doutrina desenvolvida e tendeu a idolatrar toda novidade. Continha consigo, fortes tendências favoráveis ao relativismo e o sincretismo religioso. Para eles, o Concílio tinha que ser, de tal sorte, “um novo começo” para a Igreja. O passado havia terminado seu curso; conceitos básicos e temas como o Sacrifício e a Redenção, as Missões, a proclamação e a conversão, a adoração como um elemento integrante da comunhão, a necessidade da Igreja para a salvação, todos estes foram deixados de lado, enquanto que o diálogo, a inculturação, o ecumenismo, a Eucaristia como “banquete” etc, se tornaram mais importantes. Foram depreciados os valores absolutos.
O Cardeal Joseph Ratzinger se referiu a este sempre crescente espírito de relativismo. Para ele, o verdadeiro Concílio “se contrapôs, já durante suas Sessões, com maior intensidade no período posterior, um constante “espírito do Concílio”, que é na realidade um verdadeiro anti-espírito. Segundo este pernicioso espírito (Konils-Ungeist em alemão), tudo que é novo, seria sempre e em qualquer circunstância, é melhor do que tudo que nos foi dado no passado ou do que existe no presente. Este anti-espírito, segundo qual a história da Igreja deveria começar do Vaticano II, considerado como uma espécie de ponto crucial” (Informe sobre a Fé, 1985).
O Cardeal descartava esta visão como falsa já que “o Vaticano II não queria certamente trocar a fé, senão respondê-la de maneira mais eficaz” (ibid). Também afirmou que, de efeito, “o Concílio não seguiu os rumos que João XXIII havia esperado”. E declarava que “é necessário também reconhecer que – ao menos até agora – não foi escutada a homilia do Papa João para que o Concílio significasse um novo salto adiante, uma vida e uma unidade renovadas para a Igreja” (ibid). Estas são palavras duras, porém, diria que muito verdadeiras, já que o espírito de uma exagerada liberdade teológica apartou, por assim dizer, o mesmo Concílio de suas metas declaradas.
O Consilium ad Exequendam Constitutionem de Sacra Liturgia [capitaneado por Mons. Bugnini e responsável direto pelo Rito Novo] tampouco esteve isento de ser influenciado por este incontível maremoto do chamado desejo de “mudança” e “abertura”. Possivelmente, algumas das mencionadas tendência relativizantes também influenciaram a Liturgia, minando a centralidade, a sacralidade e o sentido do mistério, e também minando o que a vida litúrgica eclesial havia nos permitido chegar por meio de uma contínua ação do Espírito Santo na bimilenária história da Igreja. Um exagerado sentido de busca do antropologismo, a confusão da posição entre sacerdotes e leigos e uma ilimitada provisão que abre espaço para a experimentação, foram cada vez mais visíveis em certas escolas litúrgicas.
Os liturgistas também tenderam a selecionar aquelas seções da “Sacrosanctum Concilium” que pareciam dar mais possibilidade à “mudança” ou à novidade, ignorando todas as demais. Por outra parte, existia um enorme sentido de pressa para efetuar e legalizar as mudanças. Tendeu-se a dar muito espaço a um modo de se olhar para a liturgia de forma demasiadamente horizontal. As normas do Concílio que tendiam restringir tal criatividade, ou que eram favoráveis à “forma tradicional”, foram ignoradas. Ainda mais, algumas práticas que a Sacrosanctum Concilium não havia sequer contemplado, foram permitidas na liturgia, como a Missa versus populum, a santa comunhão nas mãos, o abandono do latim, bem como todo canto gregoriano em favor de cantos e hinos em vernáculo sem qualquer espaço para Deus, e a extensão, mais do que além do racional, da faculdade de concelebrar a Santa Missa. Também houve uma extremada má interpretação do princípio da “participação ativa dos fiéis”.
Tudo isto foi efeito da obra do Consilium [esta obra foi o Rito Novo]. Aqueles que guiaram o processo de mudança, tanto dentro do Consilium como dentro da Sagrada Congregação dos Ritos, estiveram certamente influenciados por todas estas tendências inovadoras. No todo, o que eles introduziram foi negativo. Muito do trabalho realizado foi digno de elogios, porém, se deixou muito espaço para a experimentação e para a interpretação arbitrária. Estas “liberdades” foram exploradas até sua máxima expressão pelas mãos dos “peritos” litúrgicos, sendo que tudo isso conduziu a uma confusão demasiada. O Cardeal Ratzinger explicou estes fatos como “alguém se estremece diante do rosto desfigurado da liturgia pós-conciliar e como ela chegou a ser, ou outro se aborrece com sua banalidade e a falta dos estandartes artísticos” (A Festa da Fé, 1986). Isto não é para deixar toda responsabilidade do sucedido unicamente entre os membros do Consilium, todavia, algumas de suas aproximações eram “débeis”. De efeito, houve um espírito geral de ceder acriticamente em certos pontos ao espírito de mudança entusiasta da época, inclusive dentro da Igreja, mais visivelmente em setores e regiões geográficas. Alguns do que tinham autoridade na Sagrada Congregação dos Ritos também mostraram sinais de debilidade neste assunto. Concederam-se demasiados indultos sobre certos requerimentos.
Naturalmente, o “espírito de liberdade” a que alguns setores de peso dentro da Igreja deram “rédeas soltas” em nome do Concílio, inclusive fazendo vacilar aqueles que tomavam decisões importantes, conduziu e muito para a desordem e à confusão, algo que não buscaram nem o Concílio nem os Papas que o guiaram. A triste afirmação do Papa Paulo VI durante a tormentosa década de 70, “a fumaça de satanás entrou na Igreja” (homilia de 29 de junho de 1972 na festa de São Pedro e São Paulo); ou seus comentários acerca das escusas de alguns para impedir a evangelização “sobre a base de certos ensinamentos do Concílio” (Evangelli Nuntiandi, nº 80) mostram como este anti-espírito do Concílio fez mais dolorido seus labores.
A luz de tudo isso e de algumas conseqüências problemáticas para a Igreja, é necessário descobrir como emergiu a reforma litúrgica pós-conciliar, e que figuras ou atitudes causaram a presente situação. É uma necessidade que em nome da verdade, não podemos renunciar. O Cardeal Ratzinger analisou da seguinte forma a situação: ”estou convencido que a crise que estamos experimentado na Igreja se deve, em grande medida, à desintegração da Liturgia. Quando a comunidade de fé, a unidade da Igreja em todo o mundo e sua história, e o mistério de Cristo Vivo não são já visíveis na liturgia, onde mais será a Igreja visível em sua essência espiritual? Então, a comunidade celebra somente a si mesma, uma atividade que é completamente infrutuoso” (Joseph Ratzinger, Memórias. 1998). Como dizíamos antes, certa debilidade por parte dos responsáveis e a atmosfera de relativismo teológico, junto com o sentido de fascinação pela novidade, pela mudança, pelo antropocentrismo, o acento na subjetividade e no relativismo moral, ademais, a noção de liberdade individual que caracterizou a sociedade em seu conjunto, minaram os valores estabelecidos da fé e causaram este deslizamento até a anarquia litúrgica sobre que a qual falou o Cardeal.
As notas escritas pelo Cardeal Antonelli tomam, portanto, novos significados. O Cardeal Antonelli, um dos membros mais eminente e certamente envolvido no Consilium que supervisionou o processo de reforma, pode ajudar-nos compreender as polarizações internas que influenciaram as distintas decisões da reforma litúrgica e pode ajudar-nos também e ter a coragem de melhorar ou mudar o que foi introduzido erroneamente e que parecer ser incompatível com a verdadeira dignidade da liturgia. O Cardeal quando ainda era padre Antonelli há havia sido membro da Pontifícia Comissão para a Reforma Litúrgica criado pelo Papa Pio XII em 28 de maio de 1948. Foi esta comissão que trabalhou na reforma da liturgia da Semana Santa e da Vigília Pascal, reforma que foi tratada com muito cuidado. Essa mesma Comissão foi reconstituída pelo Papa João XXIII em maio de 1960 e, tempos depois, o padre Antonelli formou parte do grupo que trabalhou na redação da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium. Por tudo isso, ele esteve muito próximo e envolvido no trabalho de reforma desde os seus princípios.
Contudo, os ditames do movimento de reforma parecem haverem sido em grande parte desconhecidos até que o autor deste livro, “O Cardeal Ferdinando Antonelli e o desenvolvimento da reforma litúrgica de 1948 a 1970”, Monsenhor Nicola Giampietro, teve acesso a suas notas pessoais e decidiu apresentá-las em um estudo próprio. Este estudo, que foi também dissertação para o doutorado de Mons. Giampietro no Pontifício Instituto Litúrgico Santo Anselmo em Roma, nos ajuda a compreender os complexos trabalhos internos da reforma litúrgica prévios e imediatamente depois do Concílio Vaticano II. As notas do Cardeal Antonelli revelam um grande homem de fé e da Igreja, que se esforçava por conformar-se com algumas correntes que influenciaram os trabalhos do Consilium ad Exequendam Constitutionem de Sacra Liturgia. O que escreveu neste diário revela candidamente seus sentimentos de alegria como também seus sentimentos de dor e às vezes de medo diante da forma em que coisas estavam sendo feitas, as atitudes de alguns dos personagens principais da reforma, e o sentido aventureiro que caracterizou algumas das mudanças que foram introduzidas na liturgia. Este livro está muito bem redigido e foi citado pelo próprio Cardeal Joseph Ratzinger em um artigo que escreveu para a bem conhecida revista litúrgica “La Maison-Dieu”, intitulado “Resposta do Cardeal Ratzinger ao Padre Gy”. (La Maison-Dieu, nº 230, 2002/2, p. 116). Sobretudo, é oportuno estudá-lo, pois nos ajudará a ver o outro lado das apresentações mais eufóricas da reforma conciliar por parte de muitos autores contemporâneos.
A publicação em inglês deste interessante estudo contribuirá grandemente, estou seguro, para o já existente debate sobre a reforma litúrgica pós-conciliar. O que mais claro chama a atenção do leitor deste estudo é que o Cardeal Joseph Ratzinger declarou; “o verdadeiro tempo do Vaticano II ainda não chegou” (Informa sobre a fé, 1985). A reforma deve continuar, com a necessidade imediata, de reformar o Missal reformado de 1969, dado que um grande número de mudanças que se originaram com a reforma pós-conciliar parecem terem sido introduzidos com grande precipitação e sem reflexão, como declara repetidamente o mesmo Cardeal Antonelli. Necessita-se corrigir a direção para que as mudanças se façam verdadeiramente em linha com a Sacrosanctum Concilium, e se deve ir inclusive mais lejos, segundo o espírito de nosso tempo.
E o que nos impele a tais mudanças no é meramente o desejo de corrigir os erros passados [da reforma litúrgica], senão a necessidade de sermos fiéis ao que a liturgia é e significa para nós, e ao que o Concílio mesmo definiu o que é liturgia. Porque, como declarou o Cardeal Ratzinger, “a questão da liturgia não é periférica: o Concílio mesmo nos recorda que sobre esta, tratamos com o sendo o próprio coração da Igreja e da fé cristã” (ibid). O que necessitamos hoje não é nada além de audácia e alento para colocar o processo em movimento. Necessitamos identificar e corrigir as orientações e decisões errôneas, apreciar com coragem a tradição litúrgica do passado, assegurar que a Igreja redescubra as verdadeiras raízes de sua riqueza e grandeza espiritual, inclusive se preciso reformar a reforma litúrgica, assegurando assim que a Liturgia se transforme verdadeiramente em “expressão eminente da glória de Deus e, em certo sentido, uma intervenção do Céu sobre a terra” (Bento XVI, Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, 22 de fevereiro de 2007. Nº 35).
+ Arcebispo Malcolm Ranjith
Secretário da Congregação para o Culto Divino de Disciplina dos Sacramentos
8 de dezembro de 2008, Festa da Imaculada Conceição de Maria.
Fonte: O Ultrapapista Atanasiano
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