A filosofia marxista é o materialismo dialético. Segundo Marx, a matéria evolui dialeticamente, isto é, pela superação de sucessivas contradições ou tensões, passando de uma tese para uma antítese e desta para a síntese. (...) Este processo evolutivo é uma lei imanente do cosmos, que preside suas transformações desde a matéria primitiva, origem de tudo que existe, até a sociedade comunista perfeita, que é o vértice para o qual caminha toda a história e que dá sentido a toda a evolução cósmica. A filosofia marxista é assim uma cosmovisão (Weltanschuung).
O comunismo é, portanto, uma filosofia do cosmos, uma filosofia do homem e uma filosofia da história. Para ele, a origem do cosmos é a matéria. Qualquer indagação sobre a origem desta matéria não tem, para ele, valor científico, porque procuraria algo além do cosmos. A origem do homem é a própria evolução da matéria, passando dialeticamente de formas imperfeitas a formas sempre mais perfeitas. Este homem, mero resultado da evolução da matéria, não tem nenhuma razão de ser, nenhum destino além do cosmos material. Emergindo da matéria, ele volta à matéria, e, quando seu corpo se desintegra, nada mais resta da pessoa humana. O único sentido de sua vida é inserir-se na evolução, na história, e preparar o advento da sociedade futura. Como filosofia da história, enfim, o marxismo a explica como uma marcha segundo uma lei imanente, intrínseca ao próximo processo histórico, pela qual a humanidade se encaminha, determinadamente, para a sociedade comunista. Esta marcha haverá de se realizar através das três etapas da tese, antítese e síntese.
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Por várias razões, um cristão não pode aceitar a filosofia comunista. Primeiro, porque o marxismo é ateu: nega a existência de Deus. Para o comunismo, a origem de tudo é a matéria e tudo se explica pela evolução dialética da matéria. Para ele, Deus é uma criação da alienação religiosa. O homem miserável pela alienação econômica cria a idéia de um ser bom e poderoso a quem possa implorar socorro para a sua miséria. Depois projeta esta idéia fora de si, a objetiva, a personifica e assim cria-se um Deus. Enquanto o homem continuar persuadido da existência de Deus, enquanto não se der conta de que Deus é uma criação de sua miséria, não se decidirá à luta, porque continuará a esperar o auxílio do alto. A religião é o ópio do povo, porque o mantém entorpecido com essas falsas idéias e o impede de descobrir a causa real de sua miséria, e o sentido da história.
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A segunda razão da incompatibilidade do cristianismo com o marxismo reside no fato de que o materialismo comunista é um relativismo moral.
Não existe para ele uma moral absoluta, isto é, princípios morais válidos para todos os tempos. Para o comunismo, só existem princípios relativos a certa fase do processo evolutivo. O que era verdade na fase capitalista não será mais na fase comunista. Um conjunto de idéias e de princípios não tem valor em si, mas enquanto servem de clima, de superestrutura, para permitir que determinada fase histórica desempenhe sua função histórica. Assim, durante o capitalismo, cria-se um direito natural de propriedade. Essas idéias, porém, não tinham valor
O único princípio válido para o comunista é que o fim justifica os meios. Ele considera moralmente bom tudo aquilo que favorece a vitória do partido. (...)
O materialismo dialético não é apenas inaceitável para um cristão. É inaceitável por qualquer pessoa que repudia uma interpretação absurda e incoerente do mundo e da história.
O materialismo dialético é absurdo. Segundo ele, o fenômeno pensamento, consciência, só aparece para o homem, e o homem é um fruto tardio do processo evolutivo. Antes do homem aparecer, e com ele o pensamento, a matéria evoluiu dialeticamente, desde sua forma primitiva até suas formas mais perfeitas. Seguiu assim um roteiro admiravelmente convergente, admiravelmente ordenado, superando dialeticamente formas menos perfeitas até chegar ao homem. É este o sentido do princípio marxista de que a existência é anterior à consciência. (...)
Assim, o materialismo dialético nos obriga a aceitar o absurdo de um movimento evolutivo admiravelmente bem pensado, anterior a todo o pensamento.
O materialismo dialético é incoerente. Se a história também evolui dialeticamente, passando de uma tese para uma antítese, e para uma síntese, por que a sociedade comunista será a síntese final da história humana? Por que, por sua vez, aplicando o próprio princípio dialético, ela não será tese para uma nova antítese e uma nova síntese? Ou o comunismo admite que a história humana terá fim, ou não admite. Se a história terá um fim, por que todas as gerações deverão sacrificar-se em favor daqueles que terão a felicidade de vir no fim? Não existe nenhuma proporção entre o imenso esforço cósmico e o imenso esforço evolutivo de toda a humanidade, de todos os tempos, e a felicidade de uma privilegiada geração final. Se a história não terá um fim, por que a síntese comunista não será por sua vez superada pelo processo dialético?
A esta última objeção, os comunistas respondem dizendo que a sociedade comunista, como sociedade perfeita, não terá tensões internas, e assim não sofrerá a ruptura de suas estruturas, que permitiria a emergência de uma nova forma de sociedade. Tal resposta desconhece a totalmente a psicologia humana, que desejará sempre formas mais perfeitas. Em todo o caso, para não raciocinar sobre um futuro vago e ignoto, a experiência comunista mais longa, a da URSS, não parece confirmar a previsão de que a sociedade comunista absorverá todas as divisões e todas as tensões. A crer em autores comunistas, na própria URSS, tendem a aparecer novas classes entre as quais se esboçam novas tensões.
Ávila, Fernado Bastos de. Solidarismo, Rio de Janeiro, Agir, 1965, p. 100 e 108-112.
[*] Membro atual da cadeira 15 da Academia Brasileira de Letras, foi eleito em 14 de agosto de 1997, sucedendo a Dom Marcos Barbosa e havendo tomado posse em 12 de novembro de 1997.
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