Em um artigo anterior (“Uma retificação doutrinal exemplar. A propiciação na definição da missa”, Présent de 17 de julho passado), falei sobre a reafirmação do caráter propiciatório da missa (a missa é um sacrifício que reitera o sacrifício da Cruz, oferecido para a reparação dos pecados). Esta correção foi feita pela segunda edição do Catecismo da Igreja Católica, a de 1997 (1998, para a edição francesa) (1). Como recordei, esse enfraquecimento doutrinário, notável desde o último Concílio e, pois, corrigido – ao menos por uma menção – resultou na nova liturgia: dentre as deficiências da missa de Paulo VI, a diluição do caráter de sacrifício propiciatório da liturgia eucarística foi certamente o mais impressionante, manifestada especialmente pela supressão do ofertório sacrifical.
O empobrecimento mais flagrante
O fenômeno chamado de “reforma da reforma” está indicado nas entrelinhas das considerações do motu proprio Summorum Pontificum, do Papa Bento XVI, e, de maneira clara, nas obras “reformistas” do Cardeal Ratzinger sobre a nova liturgia (2). Dentro deste processo, já em curso em um número não desprezível de paróquias, especialmente na França, é patente o reaparecimento do ofertório tradicional da Missa Romana, que afirma com uma perfeita clareza esse caráter propiciatório do sacrifício eucarístico. As considerações a seguir reproduzem, essencialmente, os desenvolvimentos derivados da missa a esse respeito.
Um novo movimento litúrgico (3).
Monsenhor Nicola Bux, uma das principais figuras deste movimento de “reforma da reforma” (4), em seu livro A Reforma de Bento XVI. A liturgia entre inovação e tradição (5) comenta longamente o Breve Exame Crítico dos Cardeais Ottaviani e Bacci (6): “Eles lamentavam”, recorda ao aprová-los, “a ausência da finalidade ordinária da missa, ou seja, o sacrifício propiciatório”. O novo rito da missa tem, de fato, um efeito de redução imanente da mensagem cristã: a doutrina do sacrifício propiciatório, a adoração da presença real de Cristo, a especificidade do sacerdócio hierárquico e, de maneira geral, o caráter sagrado da celebração eucarística, encontram-se expressas de maneira muito menos sensível do que no rito tradicional. É por isso que as tentativas já antigas (7) de reintroduzir no novo missal as orações que melhor exprimem o seu valor sacrifical, a saber, as do ofertório, hoje retomam força.
Um dos elementos fundamentais — talvez o mais importante, mesmo que o menos visível, ou melhor, o menos audível — de uma correção na forma como a Missa é celebrada hoje é, sem dúvida, a reintrodução do ofertório romano. A motivação dupla de impressionante supressão da parte dos sábios liturgistas dos anos sessenta foi, por um lado, um arqueologismo que desejava saltar a Idade Média para recuperar o suposto estado da missa da Antiguidade, e, por outro, uma concessão ao espírito da época, o menos receptível possível à idéia de sacrifício oferecido pelos pecados.
Mas estes argumentos envelheceram consideravelmente. Desde a reforma de 1969, os avanços das ciências litúrgicas relativizaram muito a suposta antiguidade das bênçãos judaicas que foram trazidas para substituir as apologias (8).
É verdade que, nos anos sessenta, o ofertório aparecia tão mais desagradavelmente sacrifical quanto estavam muito em voga, então, as críticas vis-à-vis a uma teologia do sacrifício propiciatório e da “satisfação vicária”. Nesta perspectiva, o caráter muito explícito das orações do ofertório desagradavam: “Recebei, santo Pai, onipotente e eterno Deus, esta hóstia imaculada, que eu vosso indigno servo, vos ofereço, ó meu Deus, vivo e verdadeiro, por meus inumeráveis pecados, ofensas, e negligências”; “Nós vos oferecemos Senhor, o cálice da salvação”; “Recebei, ó Trindade Santíssima, esta oblação, que vos oferecemos em memória da Paixão, Ressurreição e Ascensão”; “Em espírito de humildade e coração contrito, sejamos por vós acolhidos, Senhor. E assim se faça hoje este nosso sacrifício em vossa presença, de modo que vos seja agradável”; “Orai irmãos, para que este sacrifício, que também é vosso, seja aceito e agradável a Deus Pai Onipotente”.
Uma amputação aberrante em termos de História da Liturgia
O argumento de que o ofertório constituía uma “duplicação” das orações do cânon (9) se tornou a grande justificativa para a supressão do ofertório. É de se ficar pasmo, por exemplo, ao ler um autor tão reconhecido como Robert Cabié: “O mais impressionante nestas orações é o seu aspecto de antecipação: embora sobre o altar não haja ainda mais do que pão e vinho, fala-se de ‘oferenda’ (vítima) ‘imaculada’, de ‘cálice da salvação’; é considerado de antemão aquilo que realizará consagração” (10). Ora, os mais novatos dos estudantes de história da liturgia cristã sabem que uma separação das oferendas para o sacrifício é um elemento notável da lex orandi em todas as liturgias. Todos conhecem o equivalente do ofertório romano, ambrosiano ou moçárabe nas liturgias orientais. Ninguém ignora a cerimônia da “grande entrada” ao canto do Cherouvikon (hino dos Querubins), evocação da liturgia celeste na qual se traz as oferendas com honras e cantos que antecipam o sacrifício que se realizará (na liturgia galicana, as oferendas são levadas em grandes vasos em forma de torres eucarísticas, saudando-as ao denominá-las: “Mistério do corpo do Senhor”) (11). Na liturgia de São João Crisóstomo, o padre recita, então, em voz baixa, esta oração sobre as oferendas: “Senhor, Deus Onipotente, vós que sois o único santo, e que recebeis o sacrifício daqueles que vos invocam de todo coração, recebei também a nossa oração, de nós, pobres pecadores, e fazei-la aproximar de vosso santo altar; fazei-nos dignos de vos oferecer os dons e as vítimas espirituais por nossos pecados e por todas as faltas do povo”, etc. Na liturgia armênia, ele diz ao retirar o véu do cálice: “Concedais que esta oblação vos seja oferecida por mim, pecador e vosso indigno servo. Pois sois vós que ofereceis e sois oferecido, que recebeis e sois recebido, Cristo nosso Deus…”
A eliminação destas orações do ofertório por especialistas tão competentes mostra a enorme influência que teve a ideologia no processo de transformação do missal. Dito isto, a questão prática que hoje se coloca mais e mais é: é possível introduzir o ofertório romano na celebração segundo o novo missal?
Note-se primeiro que, se do ponto de vista do vocabulário, “ofertório” foi substituído por “preparação dos dons” na Institutio Generalis Missalis Romani (n. 49-51), o termo permanece na possibilidade de uma procissão para trazer os dons que podem ser acompanhados pelo venerável nome “ofertório”, que tinha sido dado já no século V ao canto que o acompanhava: antiphona ad offertorium.
Acrescente-se que as orações da apresentação dos dons devem ser ditas em silêncio (rubrica 17 do Ordo Missae). Certamente é possível que elas sejam ditas em voz alta, mas isso surge de uma concessão (“se não há cântico do ofertório, o sacerdote pode — licet — dizer estas palavras em voz alta”). De fato, a inclusão no próprio ato litúrgico de orações e atos de piedade que visam, em primeiro lugar (mas não só), a preparação penitencial do principal ministro não poderia ser mais tradicional. Segundo os Ordines Romani, lembrou outrora Dom Cabrol (12), o pontífice reza e pede perdão por seus pecados sem que lhe sejam indicadas as fórmulas. Na liturgia galicana, enquanto o coro canta a entrada, o pontífice se prostra diante do altar, costume que coincide com as origens das apologias.
É possível, desta maneira, considerar por analogia: uma das principais confirmações da não supressão da missa romana tradicional afirmada pelo motu proprio Summorum Pontificum se encontra precisamente no fato de que seu elemento principal, o Cânon Romano, foi mantido como primeira Oração Eucarística pelo missal de 1969. Tratando-se de orações cujo caráter historicamente “apologético” (distinto das grandes orações sacerdotais como as orações, prefácio, a oração eucarística e o Pater) é atestado, pode-se descartar que a permanência da primeira oração eucarística tradicional inclui a permanência das palavras secretas que constituem o ofertório?
A reforma da reforma existe, é possível encontrá-la
Podemos, finalmente, e talvez mais importante, invocar o costume: desde a modificação do missal de 1969, muitos celebrantes tomaram ou conservaram o costume de rezar as orações do ofertório tradicional no momento do oferecimento das oblatas, sem que nunca a autoridade eclesiástica os proibisse.
Pois este é um ponto extremamente importante a ressaltar, como fiz no início: a reforma da reforma não está para ser inventada; ela já existe e está simplesmente se generalizando nas paróquias comuns. Seria possível, assim, fazer uma lista dos locais, na França, onde os párocos celebram segundo esta reforma da reforma que implementam, alguns há muito tempo. Nessas igrejas, os pontos mais importantes deste processo de “retorno” são todos aplicados, ou a maioria deles, ou vários deles, a saber: 1) a importante reintrodução do uso da língua litúrgica latina, especialmente pela utilização do canto gregoriano (Kyriale, Pater, se possível cantando partes do Próprio da Missa); 2) a distribuição da Comunhão segundo o modo tradicional; 3) o uso da primeira Oração Eucarística, se possível em latim, e sem elevar muito a voz; 4) a orientação da celebração em direção ao Senhor, ao menos a partir do ofertório; 5) o uso, em silêncio, do ofertório tradicional. Na maioria dos casos, com a celebração da forma extraordinária em paralelo, que vem naturalmente se integrar a uma vida litúrgica paroquial do tipo “novo movimento litúrgico” e que a apóia de maneira efetiva.
Muitas vezes, no entanto, os sacerdotes que se dedicam a este processo o fazem por etapas. No centro desse movimento de “retorno” está aquele do ofertório romano tradicional. Canonicamente, estamos incontestavelmente na presença de um costume em vias de formação sob a forma de enriquecimento, seja porque ele torna precisa a nova lei litúrgica, ou, mais exatamente, aflora-a, seja porque é como que abrangido por ela (13).
Padre Claude Barthe
(1) O nº 1367 do Catecismo da Igreja Católica, em sua nova redação, traz: “O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício: «É uma só e mesma vítima e Aquele que agora Se oferece pelo ministério dos sacerdotes é o mesmo que outrora Se ofereceu a Si mesmo na cruz; só a maneira de oferecer é que é diferente» (192). E porque «neste divino sacrifício, que se realiza na missa, aquele mesmo Cristo, que a Si mesmo Se ofereceu outrora de modo cruento sobre o altar da cruz, agora está contido e é imolado de modo incruento [...], este sacrifício é verdadeiramente propiciatório”.
(2) Entre outras: Entretien sur la foi, Fayard, 1985 ; La célébration de la foi, Téqui, 1985 ; Ma vie (autobiographie), Fayard, 1998 ; L’Esprit de la liturgie, Ad Solem, 2001 ; Un chant nouveau pour le Seigneur, Desclée, 2002.
(3) Editions de L’Homme nouveau, collection « Hora Decima », juillet 2010, 9,00 euros.
(4) Ao qual damos, mais e mais freqüentemente, o nome de “Novo Movimento Litúrgico”, como o Motu Proprio de 2007 aplicou as denominações de “forma extraordinária” e “forma ordinária”, respectivamente a liturgia tradicional e a liturgia transformada por Paulo VI.
(5) Tempora, 2009.
(6) Alfredo Ottaviani, Antonio Bacci, Bref examen critique du nouvel Ordo missae, Renaissance catholique, 2005.
(7) Ver já em 1985: Paul Tirot, osb, Histoire des prières d’offertoire dans la liturgie romaine du VIIe au XVIe siècle, Edizioni Liturgiche, Rome
(8) “Bendito sejais, senhor, Deus do Universo,pelo pão que recebemos da Vossa bondade,fruto da terra e do trabalho do homem: que hoje Vos apresentamos e que para nós se vai tornar Pão da vida”, “Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo vinho que recebemos da Vossa bondade, fruto da videira e do trabalho do homem: que hoje Vos apresentamos e que para nós se vai tornar Vinho da Salvação”.
(9) Joseph André Jungmann, Missarum solemnia, Aubier, 1951.
(10) « L’Eucharistie », dans L’Eglise en prière, Desclée, nouvelle édition, 1983.
(11) Além disso, seria possível, talvez mais apropriadamente, afirmar que o ofertório romano, com a sua incensação sacrifical das oferendas, é igualmente uma “duplicação” da celebração do Evangelho, e vice-versa, da mesma forma como no rito bizantino a “grande entrada” das oferendas seria uma “duplicação” da “pequena entrada” do Evangelho, e vice-versa. Mas não há espaço suficiente aqui para desenvolver esse ponto.
(12) Fernand Cabrol, « Ordines romani », Dictionnaire d’archéologie chrétienne et de liturgie, Letouzey et Ané, 1907-1953.
(13) Os costumes são considerados “contra a lei” quando retificam, contra legem; ou também “além da lei”, quando a tornam precisa, praeter legem. A nova liturgia oferece tantas possibilidades de escolhas, coleções de variações e diversidades de interpretações, que se poderia antes falar aqui de costume “por dentro da lei”, intra legem, podendo se encontrar também os elementos tradicionais, e, portanto, ser favorecido, dentro da fragmentação da norma despedaçada.
Artigo extraído da edição 7162 de Présent de sábado, 21 de agosto de 2010; Tradução e Fonte: Fratres in Unum – agradecimento ao leitor Luciano Padrão pela indicação do artigo.
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