sábado, 26 de junho de 2010

A curva de Padre Ratzinger a Bento XVI.


Resenha de Nicholas Lash – National Catholic Reporter

THEOLOGICAL HIGHLIGHTS OF VATICAN II [DESTAQUES TEOLÓGICOS DO VATICANO II]
Por Joseph Ratzinger
Publicado pela Paulist Press, $ 16,95

Após cada uma das quatro sessões do Concílio Vaticano II, Joseph Ratzinger, o jovem teólogo alemão que atuou como consultor perito do Cardeal Joseph Frings, de Colônia, na Alemanha, publicava um livreto informativo sobre a sessão recém concluída. Em 1966, um ano após o término do concílio, esses livretos foram recolhidos em forma de livro, tanto em inglês quanto em alemão. Agora este livro foi reeditado, com uma introdução feita pelo padre jesuíta Thomas Rausch.

Embora a primeira sessão do concílio não tenha produzido resultados concretos, de acordo com Ratzinger, ela foi excepcionalmente importante por dois motivos. Em primeiro lugar, ao recusar-se a endossar os materiais preparados pela Cúria Romana, “o colégio dos bispos” demonstrou que “era uma realidade em si”. O esquema preparatório sobre a revelação, por exemplo, foi “completamente um produto da mentalidade ‘anti-modernista’”, de acordo com Ratzinger. Será que a “negação quase neurótica de tudo o que era novo” continuaria? Ou será que a Igreja “viraria uma nova página, e seguiria em frente em um encontro novo e positivo com as suas próprias origens, com os seus irmãos, e com o mundo contemporâneo? Uma vez que uma clara maioria dos padres optaram pela segunda alternativa, podemos mesmo falar do concílio como um novo começo”.

Ao rejeitar o esquema da revelação, “o concílio tinha afirmado a sua própria autoridade magisterial. E agora, contra as congregações da Cúria, que servem a Santa Sé e as suas funções de unificação, o concílio fez com que a voz do episcopado fosse ouvida – não, a voz da Igreja universal”.

Em segundo lugar, o primeiro capítulo da Constituição sobre a Sagrada Liturgia “contém uma declaração que representa uma inovação fundamental para a Igreja latina”. A declaração em questão é a estipulação de que, dentro de certos limites, as conferências episcopais “disponham em seu próprio direito uma função legislativa definitiva”. Ratzinger enxerga isso como de importância fundamental: “Talvez se possa dizer que este pequeno parágrafo, que, pela primeira vez, atribui às conferências episcopais a sua própria autoridade canônica, seja mais importante para a teologia do episcopado e para o fortalecimento a muito desejado do poder episcopal do que qualquer coisa na própria Constituição sobre a Igreja”.

O Padre Joseph Ratzinger durante o Concílio Vaticano II em 1962 (CNS / KNA)

Pe. Ratzinger durante o Concílio Vaticano II em 1962 (CNS / KNA)

Considerando que os Papas anteriores haviam “considerado a cúria como um assunto pessoal no qual o Concílio não tinha o direito de interferir”, em razão do discurso de abertura do Papa Paulo VI na segunda sessão, “o tema da reforma da Cúria foi… no sentido oficialmente declarado aberto para o debate do concílio”. A noção de colegialidade estava no coração e no centro dos debates sobre o esquema da Igreja: “Assim como Pedro pertencia à comunidade dos Doze, para que o Papa pertença ao colégio dos bispos, independentemente do papel especial que exerce, não fora, mas dentro do colégio”. Uma discussão posterior do esquema sobre os bispos buscou de forma concreta implementar o conceito de colegialidade, descentralizando o poder para bispos e conferências episcopais, e propor formas adequadas de centralização através da criação de um “concílio episcopal em Roma”.

As reflexões de Ratzinger no que tange os debates sobre o ecumenismo, o esquema em que pode ser visto como “uma aplicação pastoral da doutrina no esquema sobre a Igreja”, contém uma interessante discussão sobre a relação entre “igrejas” e “a igreja”, na forma de uma resposta detalhada à eclesiologia protestante apresentada em outubro de 1963 em uma conferência em Roma por Edmund Schlink de Heidelberg, na Alemanha.

Esta sessão viu a promulgação dos dois primeiros textos conciliares, a Constituição sobre a Sagrada Liturgia e o Decreto sobre os Meios de Comunicação Social. A fórmula de Paulo VI de aprovação rompeu com o costume, desde o final da Idade Média, de considerar as decisões conciliares como sendo postas em vigor como lei papal: “Paulo, bispo, servo dos servos de Deus, juntamente com os padres conciliares” (o meu itálico).

Em setembro de 1964, “o capítulo sobre a colegialidade dos bispos foi aprovado logo na primeira votação por uma maioria de dois terços”. Não é de surpreender que, o capítulo de Ratzinger sobre a terceira sessão, durante o qual a Constituição sobre a Igreja foi promulgada, concentre-se sobre a doutrina da colegialidade episcopal e sobre a questão estrutural não desconexa das relações entre o Papa e o concílio.

Na primeira, Ratzinger diz que a noção de que a Igreja, que consiste de comunidades adoradoras, é “consequentemente construída a partir de uma comunidade de bispos … é provavelmente a idéia central na doutrina de colegialidade do concílio”. Ele coloca o dedo sobre o que ele chama de “fraqueza real do debate sobre a colegialidade”: “Tanta energia foi concentrada na relação de colegialidade como a primazia de que os problemas intrínsecos do próprio princípio da colegialidade, sua complexidade, seus limites e suas variações históricas não eram mais vistos”.

No que tange as relações entre o Papa e o concílio, ele acredita que as intervenções papais em novembro de 1964, embora necessárias no interesse da mediação entre as forças opostas no concílio, revelou que “o Papado não tinha ainda encontrado uma forma para a formulação de sua posição”, que não seja, e não pareça ser, monárquica. Esta, ele acredita ser um problema prático e não teórico, no sentido de que a resolução vai levar tempo: “A paciência é necessária”.

A característica mais marcante do capítulo sobre a terceira sessão, no entanto, aparece em seu discurso de encerramento. Observando que “o episcopado tornou-se mais aberto, de ano para ano”, e que, à medida que os bispos, “a partir de inícios um pouco tímidos e hesitantes”, encontravam voz e coragem, faziam declarações corajosas que “há cinco anos seriam impensáveis”, Ratzinger dá a entender que o “evento verdadeiro” do concílio foi “o despertar da Igreja”. Alcançado em uma unidade de propósito mundial, “este despertar espiritual… foi o grande e irrevogável evento do concílio. Ele foi mais importante em muitos aspectos do que os textos que aprovou”.

O Papa Bento XVI chega para celebrar uma missa que marca o quinto aniversário da morte do Papa João Paulo II na Basílica de São Pedro, no Vaticano, 29 mar. (CNS / Paul Haring)

O Papa Bento XVI chega para celebrar uma missa que marca o quinto aniversário da morte do Papa João Paulo II na Basílica de São Pedro, no Vaticano, 29 mar. (CNS / Paul Haring)

Agora as coisas estão ficando realmente interessantes, pois esta é exatamente a avaliação feita pelo falecido Giuseppe Alberigo, em sua conclusão para o quinto e último volume da maciça História do Concílio Vaticano II, do qual foi editor geral. Há já vários anos, os funcionários da cúria romana vêm realizando uma campanha enérgica de polêmica e declarações errôneas contra essa história, em uma tentativa de desacreditar a história que ele diz (Examinei esta campanha nos últimos capítulos do meu livro Teologia para Peregrinos).

A pergunta surge, e é uma indagação muito mais ampla do que uma importância meramente acadêmica: Até que ponto o Papa Bento XVI concorda com o jovem padre Joseph Ratzinger?

A quarta e última sessão do concílio “teria de enfrentar os problemas mais difíceis, os problemas que tinham sido adiados por três anos” – a liberdade religiosa, o cristianismo e o judaísmo, e os problemas associados à produção de um tipo inteiramente novo de documento conciliar, o documento que se tornou Gaudium et Spes. “Apesar de todas as rejeições”, o texto da Constituição conservou “um otimismo progressista quase ingênuo que parecia ignorar a ambivalência de todo o progresso humano externo”.

É interessante observar que, ao discutir o Decreto sobre o Ministério e a Vida dos Sacerdotes, ele comenta sobre a questão do celibato sacerdotal: “Em vista da escassez de sacerdotes em muitas áreas, a Igreja não pode evitar rever esta questão silenciosamente. Esquivar-se disso é impossível, em vista da responsabilidade de pregar o Evangelho dentro do contexto do nosso tempo”. Quarenta anos mais tarde, a escassez de sacerdotes atinge o nível de crise, e ainda assim Bento parece ter conseguido continuar fugindo dela.

A Paulist Press está de parabéns por reeditar essas reflexões lúcidas, perspicazes e entusiasmadas sobre as quatro sessões conciliares. Como já mencionei mais de uma vez, eles levantam muito fortemente a questão da relação entre as opiniões do jovem peritus e àquelas do atual Papa.

Na sua introdução, o padre jesuíta Thomas Rausch afirma que “os próprios pontos de vista de Ratzinger, com algumas exceções, permaneceram notavelmente coerentes ao longo dos anos”. Sobre o qual, duas observações. A grande exceção, que ele menciona, é a liturgia. No entanto, não vejo nenhuma incoerência entre o entusiasmo de Ratzinger à Constituição sobre a Liturgia, por um lado, e, por outro lado, a sua avaliação cada vez mais crítica do que aconteceu na liturgia nas últimas décadas.

Em segundo lugar, algumas coisas se sobressaem mais fortemente deste livro que o apoio incondicional de Ratzinger para o projeto central do concílio: a saber, a elaboração e implementação da doutrina da colegialidade episcopal como a estrutura para, em suas palavras, o “fortalecimento do poder episcopal há muito tempo desejado”. Bento é obcecado pela importância de conciliar os cismáticos lefebvristas com a Igreja. É essa obsessão, creio eu, que explica dois de seus empreendimentos mais extraordinários: o motu proprio permitindo o uso geral do Missal de 1962 e a Constituição Apostólica que estabelece “ordinariatos” para anglicanos descontentes. O primeiro foi feito sem consultar os bispos, e contra os pontos de vista de um número considerável deles. O segundo foi ainda mais espantoso: uma das grandes inovações estruturais na Igreja foi promulgada sem consultar os outros bispos da Igreja Católica (para não falar de membros seniores da Comunhão Anglicana).

Parece-me que não se pode dizer que um Papa que tem capacidade para fazer essas coisas, da maneira que foram feitas, tenha um pingo de imaginação verdadeiramente colegial. Precisamos lembrar que, entre o jovem teólogo, Joseph Ratzinger, tão crítico da cúria romana e tão entusiasmado com a restauração do poder episcopal, e o Papa Bento XVI, ergue-se o Cardeal Ratzinger, há 24 anos o chefe da mais poderosa das congregações da Cúria.

[Nicholas Lash é professor emérito de teologia na Universidade de Cambridge, na Inglaterra.]

Visto em: Fratres in Unum

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