Para o historiador e professor Juliano Alves Dias, o papa ainda não disse a que veio. Mas uma coisa é certa: embora digam que ele se opõe a Bento XVI, Francisco ainda não negou a tradição proposta por Ratzinger
Juliano Alves Dias
Especial para O POVO
Especial para O POVO
Definir o papa Francisco e seu significado para a história recente da Igreja Católica não é fácil, ainda mais com tão pouco tempo de pontificado. Não são raros aqueles que tentam ver uma oposição de pensamento e ação entre ele e seu predecessor, Bento XVI (2005-2013). E muitos são aqueles que buscam se apropriar da imagem papal ou mesmo construí-la sob seus interesses para justificar pensamentos pessoais ou de grupo.
O pontificado de Bento XVI pode ser encarado como uma tentativa de reparar uma linha histórica que parecia ter sido rompida com o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Ratzinger participara do Concílio e, como papa, procurou criar uma “Hermenêutica da Continuidade” em relação ao mesmo, uma interpretação do Vaticano II que o colocaria como uma continuidade com o período precedente e não como uma ruptura.
Frente a isso, Bento XVI favoreceu certos agrupamentos conservadores, inclusive alguns em situação irregular, como é o caso da Fraternidade Sacerdotal São Pio X. Os efeitos foram os mais diversos e os grupos progressistas começaram a demonstrar descontentamento. Alegando cansaço físico e espiritual, Bento XVI renunciou em meio a uma crise na Igreja com o vazamento de documentos do Vaticano, escândalos de pedofilia, bem como, corrupção no IOR, que funciona como um banco do Vaticano.
Um novo Conclave é então realizado e, como sucessor de Bento XVI, é eleito o cardeal jesuíta, de nacionalidade argentina, Bergoglio, que assume o nome de Francisco. O mesmo, pouco após a fumaça branca tomar os céus da Praça de São Pedro, sai para abençoar o povo, mas antes pede sua benção. Seu estilo imediatamente contrasta com o do antecessor, aparentemente surgira já ali uma mudança de curso e discurso para a Igreja Católica.
São retomadas notícias que teriam vazado sobre o Conclave de 2005 que elegera Ratzinger e fizera Bergoglio como candidato de oposição, ficando este em segundo lugar. Agora, com a saída de Bento XVI, Bergoglio se torna o papa. Estes dados, por segredo pontifício deveriam ser sigilosos, portanto, não são oficiais; mas é notória uma discrepância, ao menos no estilo entre estes dois papas, e a tentativa de apropriação de sua imagem por aqueles grupos que não aceitavam as ações de Bento XVI.
Ratzinger foi identificado com a tradição católica, fato expresso, de modo singular, em seu estilo sóbrio nas celebrações litúrgicas e homílias de forte embasamento teológico. Bergoglio, até o momento, tem falado de forma mais simples, numa linguagem mais popular. Muitos de seus pronunciamentos evitam temas polêmicos tais como o aborto, a união entre homossexuais etc., elemento que parece agradar os mais liberais e que têm silenciado um pouco a aversão à Igreja.
E é neste aspecto que muitos querem enxergar Francisco como oposição à Bento XVI. Seu estilo pessoal, que lembra um simples padre de paróquia, parece ignorar o que se exige de um papa que deve lidar com o mundo e os mais diversos interesses. Ainda é cedo para se qualificar o pontificado de Francisco, as primeiras impressões são de contraste, mas este papa não negou, ao menos até agora, a tradição e a hermenêutica da continuidade proposta por Ratzinger.
Bento XVI ainda vive, sua memória ainda é recente, as mudanças com as quais Francisco é identificado são teorias e especulações. Se elas se concretizarão não se pode afirmar com veemência, mas é certo que mais uma vez a Roda da Fortuna girou na Igreja, enquanto um setor cai o outro pode ascender e as identidades da Igreja e de seu papa continuam sem uma definição clara, diluída em meio aos interesses de diversos setores.
Francisco assume a nau de Pedro em meio a conflitos internos na instituição eclesiástica. Ao mesmo tempo em que reafirma princípios dogmáticos e se exime de assuntos polêmicos, não confere preferência declarada a nenhum grupo. Sua imagem como papa ainda está sendo construída e permanece cercada pelas brumas do desconhecido no que tange à renúncia de Bento XVI e aos bastidores do Conclave que o elegeu. Francisco ainda é uma interrogação.
Juliano Alves Dias é doutor em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Escreveu o livro Sacrificium Laudis, publicado pela Unesp, analisando a continuidade de Bento XVI e o retorno do catolicismo tradicional.